21 de maio de 2007

JARBAS PASSARINHO X LÚCIO FLÁVIO PINTO


Hoje faz vinte e cinco anos que ocorreu uma pendenga política, literária e filosófica no MODEPADOS (MOVIMENTO DEMOCRÁTICO DE PAIXÃO AS DOMÉSTICAS). Essa colisão era entre duas facções, que representou uma faceta bisbilhoteira de concepção de setores conservadores e progressistas nessa agremiação juvenil de paixão pelas empregadas domésticas. Para ficar bem claro: de um lado, os adeptos do MDB (Movimento Democrático Brasileiro); e do outro lado os adeptos da ARENA (Aliança Renovadora Nacional). Pelo MDB, o Dmitri Cavalcanti e o Marcelo Lauande eram os progressistas. Pela ARENA, o Pepê e Toni Santiago eram os conservadores. Esses quatros membros eram infinitamente os mais destacados líderes do MODEPADOS.

O ano era 1977. O MODEPADOS mal tinha cinco meses de vida, quando ocorreu essa bifurcação entre os setores conservadores e progressistas. A gênese desse desdobramento foi quando meu amigo Pepê propôs, com toda pompa do mundo, a colocação de um livro na biblioteca do MODEPADOS. O livro era simplesmente do então senador Jarbas Passarinho da ARENA do estado do Pará. Um opúsculo de cunho para-didático. O título era “PARÁ”. Editado pelas Organizações Bloch, continha 96 páginas. As mesmas Organizações Bloch lançaram, nesse igualmente período, uma coleção de livros para-didáticos sobre todos os estados brasileiros. Pepê ficou maravilhado com o tomo didático do senador Passarinho. No mesmo dia em que sua mãe o presenteou com o alfarrábio “PARÁ”, ele o levou a uma reunião ordinária do MODEPADOS. Quase todos estavam presentes, os conservadores e, principalmente, os progressistas. Verbalizou o ostentoso arenista Pepê: -Meus amigos, eu acabo de ganhar um honroso livro. Conta tudo sobre o estado do Pará. Suas histórias, com seus governantes e sua riqueza. Este livro será agora da biblioteca do MODEPADOS. É do senador Jarbas Passarinho!!!

Lembro como hoje aquela cena. Memorável. De uma facção, o Pepê clamando pela inclusão do livro do Passarinho na biblioteca do MODEPADOS. De outra facção, o jeito pasmado do Dmitri e do Marcelo diante daquela reivindicação do Pepê. Sem entender muito a atitude do Pepê, o Dmitri e o Marcelo ficaram catatônicos. O restante dos membros do MODEPADOS, ficaram silenciosos. Mas, o Pepê não perdeu tempo, foi logo colocando seu livro na estante da biblioteca do MODEPADOS. Diga-se de passagem, que essa biblioteca já tinha mais de 25 livros. Dos mais variados temas. Os mais lidos eram os livros (cinco volumes) da Enciclopédia DIDÁTICA DA EDUCAÇÃO SEXUAL de Raul de Polillo. (Ed. Cícero. São Paulo. 1973). Passado os momentos catatônicos, Dmitri retomou seu vigor oposicionista em referência ao arenista Pepê com maior escarcéu: -Porra nenhuma de livro desse senador da ditadura! Contesto a colocação desse esterco de livro na nossa biblioteca. Já o Marcelo, na mesma vivacidade oposicionista, foi mais longe na impugnação: -É contra todos nossos princípios democráticos que tenha qualquer obra de um filho da puta da ditadura militar. E tem mais, aqui não é uma biblioteca palaciana que aceita qualquer excremento de trabalho.

O clima ficou sobrecarregado. Pepê bufava de fúria enquanto Dmitri e Marcelo falavam. Naquele momento adentra com toda contenção pacífica do mundo, o meu amigo Tênde. Pegou o livro da estante e disse a todos: -Este livro é didático. Não fala de política partidária. Tem vários dados geográficos e históricos que nós precisamos como estudantes. Eu queria que o Dmitri e o Marcelo não fizessem tumulto por um simples livro que vai nos ajudar muito. Dmitri, na sua célebre e indomável irredutibilidade, foi pro confronto com o pacato Tênde: -Porra nenhuma de livro de senador da ditadura! O Marcelo tem razão quando diz que é contra nossos princípios democráticos que tenha qualquer obra de um filho da puta da ditadura militar. Tem mais: eu quero uma votação pra ver se coloca ou não a obra desse coronel de meia tigela na nossa biblioteca.

Pepê, até então calado, retrucou: -Que porra é essa de democracia que proíbe um livro numa biblioteca? Por que ele não é do MDB? Isso que é ditadura!

Marcelo replicou com a proposta do Dmitri: -Pepê, tu queres democracia? Então, vamos pra votação! Pepê sem desperdiçar sua aptidão intrépida, apostou na vitória: -Podes colocar em votação! Foi nesse momento que pela primeira e última vez, entre 1977 a 1985, o Dmitri e o Marcelo perderam uma votação no MODEPADOS. Até seus mais habituais aliados sucumbiram diante dos argumentos do Pepê. Mas, antes da votação, os irmãos Eduardo e Paulo Barbosa fizeram um pleito. Era que cada parte defendesse suas opiniões por três minutos antes do sufrágio. O Dmitri e o Marcelo concordaram positivamente com um gesto de cabeça. Já o Pepê fez uma observação: -Tudo bem, eu concordo, mas primeiro é a parte do contra, depois sou eu. Numa auto-suficiência de fazer inveja ao ex-ministro da ditadura militar Delfim Netto, Dmitri logo solenizou: -Como a vitória será nossa, eu começo.

Tinha 19 membros do MODEPADOS na sede (o barraco). Todos atentos. Todos sentados. Percebi ali, que aquele momento seria histórico pra nós modepadianos. Dmitri de um lado, Pepê do outro.

Dmitri começou com uma eloqüência discursiva de fazer cobiça ao ditador cubano Fidel Castro. -Meus camaradas, este país é governado por um bando de covardes que fazem e acontecem porque acreditam que são os maiores e os melhores. Com fuzil qualquer um pode ser o maior e melhor. Agora quando alguém faz qualquer crítica, contra qualquer coisa, é proibido de falar e agir. Meu pai foi cassado em 1964, porque era sindicalista. E quem é sindicalista é subversivo na concepção dos homens da ditadura. Esse Jarbas Passarinho é um sujeito mau-caráter que comandou a cassação do meu pai e de centenas de homens nesse país. Por conta desse homem e de outros iguais a ele, meu pai e outros perderam seus empregos e foram proibidos de ter direitos políticos. É quando peço a todos aqui, que homens como esse coronel prepotente não seja companhia para nossa agremiação. Muito obrigado!!!

Poucas palmas.

Eu senti naquele exato instante a derrota do Dmitri e do Marcelo. Foram poucas palmas. Pela contestação do Dmitri, no meu ponto de vista, havia uma incongruência entre ser democrático e proibir um livro numa estante. É!, ficou mal explicado. Por outro lado, o Pepê soube captar a falta de ovação por parte dos membros do MODEPADOS ao discurso do Dmitri. Pragmático, optou por perguntar coisas corriqueiras aos seus eleitores. -Quem daqui tem algum livro sobre a história do Pará nas suas casas? Quem?

Apenas Dmitri, Marcelo e eu levantamos o braço.

Pepê todo peremptório, armou-se: -Vejam, meus amigos, isso que é democracia! Nesse livro podemos conhecer nossos próprios lugares através da história e da geografia do nosso lugar. O livro do senador é uma maravilha. Eu pergunto de novo: quem de vocês não precisa de informações sobre o Pará nas suas tarefas escolares?

Não teve jeito, com as exceções do Dmitri, Marcelo e eu, todos levantaram a mão.

Pepê, mais categórico do que nunca, cantou sua vitória: -Sei que vocês querem ser homens inteligentes, por isso querem o livro na estante. Isso que é democracia! Muito obrigado!

Ninguém bateu palmas. Tênde, após a altercação dos oradores, colocou em votação. -Já que as duas partes falaram, eu vou perguntar: quem for a favor da entrada do livro PARÁ do Senador Passarinho levante o braço.

Marcelo foi logo contra aquele encaminhamento: -Antes, uma questão de encaminhamento. Tênde, eu sou contra esse teu modo de proceder à votação.

Tênde, pacificamente, rebateu: -Marcelo, não atrapalha!

Mas, o Marcelo perseverou: -Tem que ser assim a pergunta: Quem for a favor da entrada do livro PARÁ do Senador Passarinho, QUE É COMPONENTE SUPERIOR DA DITADURA MILITAR, levante o braço. Esse aposto na pergunta é de suma importância na hora da votação.

Tênde, doido pra terminar aquele prélio, foi mediando com o Marcelo: -Tudo bem, Marcelo. Não é por causa de um aposto que não vamos deixar de votar. Então, vamos lá: quem for a favor da entrada do livro PARÁ do Senador Passarinho, QUE É COMPONENTE SUPERIOR DA DITADURA MILITAR, levante o braço. A derrota foi fragorosa: 14 votos sim, 3 votos contras e 2 abstenções.

Não nego que o Pepê foi pragmático e, acima de tudo, prolixo na discussão de conteúdo, entretanto ele soube captar o conjunto dos filiados do MODEPADOS, simplesmente pelo senso utilitário que uma obra para-didática poderia ajudar em suas vidas escolares. No MODEPADOS, a maioria era um bando de moleques sacanas, punheteiros, mulherengos e que não queriam porra nenhuma com as tarefas escolares. Tendo um livro desse que facilitasse suas vidas escolares, é obvio que eles iriam votar nessa proposta. Isso porque o Dmitri e o Marcelo quiseram politizar um debate com uma platéia que não queria politização na contenda sobre a entrada ou não do livro do senador Passarinho. Esse descuido foi crucial. Imediatamente, Dmitri e Marcelo se retiraram do barraco do MODEPADOS. Pepê computava os louros da vitória, colocando, ele mesmo, o livro do seu ídolo Jarbas Passarinho na estante da biblioteca.

Mas, a grande maioria tinha e até hoje tem respeito pelo Dmitri e Marcelo, porque foram os idealizadores do MODEPADOS. Por conta desse respeito, eles não comemoram a vitória do Pepê. Ficaram em silêncio. Com a derrota, Dmitri e Marcelo chamaram, instantaneamente, uma reunião na casa do Edison Morikawa com seus aliados mais próximos e exigiram fidelidade política nos compromissos de governar o MODEPADOS. Compareceram os irmãos Eduardo e Paulo Barbosa, Alemão, José Guilherme Lima, eu e o Edison Morikawa.

Para Dmitri e Marcelo, a liderança do MODEPADOS seria dos emedebistas dessa célula de paixão pelas empregadas domésticas. Tanto o Dmitri, quanto o Marcelo foram enfáticos em dizer que aquela derrota foi um desprestigio políticos para eles. -Eu não quero perder para um moleque que é da ARENA. E tem mais, ano que vem esse Coronel Passarinho vai tentar sua reeleição como senador ou querer ser governador. O Pepê vai deitar e rolar contra nós. Não podemos perder nenhuma votação no MODEPADOS para um arenista babaca -disse um Dmitri ainda ressentido da derrota.

Todos ficaram calados. Marcelo, porém, perguntou ao Dmitri: -E o que a gente vai fazer com o livro que ficou lá? Dmitri, mais consciencioso de sua responsabilidade democrática, foi leal com o veredito da votação: -Perdemos e vamos respeitar!

Marcelo revoltou-se: -Porra nenhuma de respeito ao filho da puta do Passarinho. Vou tirar na marra aquele livro de lá!

Novamente, Dmitri, mais do que nunca, consciencioso de sua responsabilidade democrática, repreendeu o Marcelo: -Eu que te digo, porra nenhuma!!! Nós vamos perder prestígio no MODEPADOS porque não soubemos perder? Isso não é perfil de liderança.

Edison Morikawa que só observava aquela pendência entre o Dmitri e o Marcelo, não agüentou sua curiosidade e perguntou: -Dmitri e Marcelo me respondam uma coisa: o MODEPADOS serve para amar as empregadas domésticas ou fuder o senador Passarinho?

Eu não agüentei, comecei a rir. Depois todos começaram a rir. Dmitri, ainda rindo, redargüiu: -Serve pra essas duas missões. O sátiro Paulo Barbosa reagiu na hora: -Égua! Eras de ti, Dmitri, eu só fodo mulheres!!!

Marcelo, mesmo rindo, finalizou: -Nossa missão sempre será amar as empregadas domésticas, mas não podemos negar que além delas, tem uma vida lá fora que precisamos participar. Concordo com o Dmitri que nós temos que respeitar o resultado. Mas, vamos esperar uma oportunidade para desmascarar o senador Passarinho diante do pessoal do MODEPADOS.

A resposta dos emedebistas do MODEPADOS não demorou muito. Dona Gercy Cavalcante, mãe do Dmitri, soube do confrontar das duas alas no MODEPADOS. Dona Gercy Cavalcante era e é uma mulher culta e leitora voraz e assídua de revistas, jornais e livros da literatura brasileira. Não é que foi ela a salvadora da honra dos emedebistas no MODEPADOS. Ainda bem!

-Dmitri, eu acabo de ler um artigo do jornalista Lúcio Flávio Pinto sobre o livro do Passarinho. Ele coloca o livro como uma mediocridade de conteúdo e com crassos erros históricos e geográficos -descreveu calmamente Dona Gercy com um ar de revanche.

Ágil com aquela notícia, o Dmitri telefonou imediatamente pro Marcelo: -Convoca imediatamente Eduardo e Paulo Barbosa, Alemão, José Guilherme Lima, Edison Morikawa e o teu irmão Eduardo. Tenho informações sobre o Passarinho e seu livro medíocre. Saiu um artigo no jornal O Liberal do Lúcio Flávio Pinto que mete o cacete nele e o Passarinho fica todo fudido. Marca a reunião aqui em casa por volta das cinco da tarde. Sem erro, porra!

Marcelo do outro lado da linha: -Pai d`égua. Não te preocupa. Vou convocar pra já o pessoal.

Cinco da tarde todos estavam lá. Dmitri começou a reunião convocando Dona Gercy para relatar sua opinião sobre o artigo do Lúcio Flávio Pinto: -Mãe, coloque seu parecer sobre o artigo do Lúcio.

Com aquela fleuma exclusiva da Dona Gercy, eu senti que os rumos para o Pepê iam mudar. Ela começou pronunciando que investigou o artigo do Lúcio Flávio Pinto e também leu o livro do senador Passarinho. -O artigo do Lúcio é imparcial. Bem redigido, ele optou por trabalhar nas contradições e erros gritantes do Passarinho. Fiz um roteiro baseado pelo artigo do Lúcio e encontrei mais de dez desacertos de conteúdo e equívocos de informações no livro do Passarinho.

-Fudesse pro Passarinho e o Pepê -berrou o desbocado Paulo Barbosa.

-Ê, seu porra, não fala palavrão na frente da minha mãe -replicou o Dmitri.

-Desculpe! -pediu todo acanhado o desbocado Paulo Barbosa

Para amenizar o clima, José Guilherme Lima quis imediatamente saber do Dmitri: -Então, qual será o encaminhamento?

Dmitri, sem perder ocasião de revanche contra o Pepê, foi em seguida propondo: -O encaminhamento tem duas extensões: a primeira é o chamamento de todos para reunião; a segunda é a exposição da minha mãe sobre o livro do Passarinho na reunião. Com isso, vamos colocar em pauta a retirada do livro do Passarinho da biblioteca por deficiência de conteúdo. Alguma pergunta?

Paulo Barbosa fez uma pergunta óbvia, mas oportuna: -Dmitri com esses encaminhamentos a gente ganha do Pepê?

Dmitri disse que estava preocupado: -Não tenho certeza de que vamos ganhar. Precisamos fazer uma pressão com nossos amigos do MODEPADOS. Eu estou com a listagem de todos os membros do MODEPADOS. São 23 membros. Nesta minha lista já tem divisão dos nomes por tendência. Os de tinta vermelha são ligados a gente. E os de azul são ligados ao Pepê. Marcelo, tu tens que cuidar disso. Ok? Ah!, precisamos também tirar fotocópias do artigo do Lúcio Flávio para entregar pro pessoal. O Edison Morikawa fica com esta missão.Ok? Tanto o Marcelo, quanto o Edison Morikawa concordaram com os encaminhamentos do Dmitri. Os demais saíram alegres da reunião. Eu confesso que ao sair dessa reunião fiquei convicto que ganharíamos aquele duelo com o Pepê. Os dados fornecidos pelo artigo do Lúcio Flávio Pinto, via Dona Gercy, eram irrefutáveis. Só restava encaminharmos nossas atuações politicamente para vencer o Pepê.

Marcelo, já com as fotocópias do artigo do Lúcio na mão, passou dois dias antes da reunião ordinária da sexta-feira, somente confabulando com os membros do MODEPADOS que eram aliados do Dmitri. Na verdade, eram quinze membros simpatizantes dos emedebistas. Ou seja, tínhamos a maioria. Marcelo também pediu sigilo absoluto aos amigos simpatizantes. Com o mapeamento eleitoral feito e um sigilo dos aliados, a reunião ordinária da sexta-feira do MODEPADOS começa pontualmente no horário das sete da noite. A reunião já tinha quorum com 22 componentes. Dmitri começa a reunião com alguns informes sobre novas empregadas que chegaram ao conjunto Médici I. Dmitri, de pronto, convoca nosso poeta: -Uriel, tu que és nosso trovador, tens que fazer logo os poemas de acolhimento ao mundo do MODEPADOS. A lista, com os nomes, as fisionomias delas e do endereço, é esta. Encaminha logo amanhã e entrega ao Robi e ao Rogério que eles vão apresentar os poemas para nossas futuras rainhas.

Lacônico, Uriel referendou: -Será um prazer!

Dmitri comunicou, também, que as veteranas empregadas domésticas Irene, Joana e Paula queriam conhecer a Casa Noturna Xodó (BR-316) e que tínhamos que viabilizar esse sonho delas. Outro apontamento da pauta foi dado pelo meu amigo Auri Junior, irmão do Toni Santiago, sobre o requerimento da empregada doméstica Ceição Pitiú que queria o LP do cantor paraense Alípio Martins. Dados esses informes, o meu amigo Ronaldo perguntou ao Dmitri se não poderíamos logo encaminhar a pauta. Dmitri concordou e encaminhou na hora. Pela ordem, na listagem do mês, para levar a Irene, Joana, Paula na Casa Noturna Xodó (BR-316) foram escalados o Vitaliano, Toni Bilu Cavalcante, Márcio Farofa, Allan, Flávio Lauande e Carlos Sarmanho. Dmitri forneceu na hora o dinheiro do ônibus e de seis geladas para os cicerones do MODEPADOS e as nossas Rainhas do Fogão. Dmitri forneceu também a chave da capela do cemitério São Jorge, para que os modepadianos pudessem, depois de voltar da Casa Noturna Xodó, levarem as Rainhas do Fogão para debaterem sobre os efeitos da energia atômica no mundo contemporâneo do macho mendariano. Um tema culminante de notabilidade para ciência moderna. No caso do pleito da Ceição Pitiú, Dmitri perguntou ao tesoureiro do MODEPADOS: -Mauricio Testa, ainda temos mais dinheiro em caixa pra comprar o LP do Alípio?

O Maurício Testa, exímio secretário de finanças, respondeu: -Sim.

Dmitri, sem rodeios: -Compra logo amanhã, porque a Ceição Pitiu merece. Ela sempre traz uísque 12 anos do patrão dela pra gente beber. Quando terminou a primeira parte da reunião, Marcelo levantou-se e endereçou um novo tema na pauta de debate: -Camaradas, gostaria que nós pudéssemos voltar a discutir se coloca ou não a merda de obra do coronel Passarinho na nossa biblioteca.

O arenista Toni Santiago reagiu incisivamente: -Marcelo, peraí, esse ponto de pauta já foi vencido na reunião passada!

O emedebista Eduardo Barbosa Junior contrapôs: -Estava vencido! Soubemos que o conteúdo do livro tem erros colossais.

Pepê foi logo em cima do Eduardo Barbosa Junior: -Quem te disse essa asneira?

Dmitri levantou-se e dirigiu-se a todos: -Pessoal, eu peço calma... Meus amigos, eu gostaria de chamar a minha mãe para que pudéssemos apreciar a fala dela sobre livro do Passarinho. Pepê, em especial a ti, gostaria dessa atenção.

Pepê relutou: -Dmitri, eu sou contra chamar tua mãe. Vocês perderam e agora tão chamando para a defesa a Dona Gercy! Que é isso, companheiro? Tens que saber perder.

Dmitri, sem ferocidade, responde calmamente: -Meu amigo Pepê, eu admito a minha derrota. Tanto que o livro continua aí na estante. Só que depois da reunião passada, nós descobrimos que o livro tem uma porrada de erros grosseiros. Isso vai prejudicar a gente.

O meu amigo Roberto, surpreso, manifestou-se ao Dmitri: -Rapaz, essa semana eu fiz um trabalho escolar de geografia pra mim e pra minha irmã Kátia sobre o Pará e pesquisei no livro do Passarinho!

Novamente, o desbocado Paulo Barbosa não perdeu a oportunidade de encarnação e falou bem alto: -Marcelo, o Passarinho fudeu mais dois!!!

Gargalhada geral na reunião. Pepê, não gostando do menosprezo ao senador Passarinho, postulou ao Dmitri: -Posso até concordar que Dona Gercy venha participar da reunião, mais não podemos desapreciar o nosso maior senador do Pará e do Brasil.

Nesse momento, uma grande parte dos presentes começou a vaiar o Pepê.

Dmitri, berrando, interrompeu na hora aquela vaia: -Caralho, nós temos que respeitar o Pepê!!!

O silêncio retornou ao barraco. Dmitri olha pra todos, com aquele olhar de sargento, e diz: -Quero respeito nesta porra!!!.

O silêncio continua. Só é prejudicado pelo som dos grilos vindo do cemitério. Novamente, Dmitri olha pra todos, agora com um olhar de tenente, e diz: -Com a concordância do Pepê, eu vou mandar chamar a minha mãe para palestrar sobre o livro do Passarinho e quero silêncio e respeito nesta porra!!! Senão, vai ter neguinho que vai ser expulso do MODEPADOS na porrada!... Marcelo, chama minha mãe.

O silêncio continua. Novamente, só é prejudicado pelo som dos grilos vindo do cemitério.

Depois de quatro minutos, Dona Gercy, sempre bonita e elegante, chega no barraco. Como seria óbvio, é respeitosamente cumprimentada por todos. Foi o Eduardo Barbosa Junior que fez a parte de apresentador: -Dona Gercy, a senhora foi chamada, e nós agradecemos sua presença, porque existe uma contestação em relação ao livro do senador do Pepê, digo, do senador Passarinho. Assim, nós gostaríamos que a senhora colocasse tim-tim por tim-tim se existe essa contestação.

Com uma voz pausada e serena como sempre, Dona Gercy começou sua exposição falando da alegria diante daquela polêmica: -Meus filhos, eu queria primeiro falar sobre a minha alegria. Por que isso? Porque vocês estão discutindo e debatendo sobre um livro. Isso é bom para a formação literária e política para a vida de vocês. E o Passarinho sempre será um sujeito polêmico...

O escárnio do Paulo Barbosa surge outra vez: -Dona Gercy, com todo respeito que eu tenho pela senhora, mas essa briga pelo Passarinho é do Pepê e do seu filho. Porque se dependesse de mim, eu já tinha usado minha baladeira e colocado o Passarinho no lugar dele: na minha gaiola grande de alumínio pra deixar meu canário macho comê-lo.

Novamente, gargalhada geral na reunião. Novamente, Pepê, não gostando do menosprezo ao senador Passarinho, postulou ao Dmitri: -Peço a expulsão do Paulo da reunião!

Marcelo deu uma de bombeiro: -Paulo, para com isso!!! Pepê, eu prometo que o Paulo não vai falar mais nada. Pode continuar Dona Gercy...

Pepê ficou calado. E o Paulo também.

Dona Gercy com um leve sorriso no rosto começou sua exposição: -Gostaria primeiro de falar sobre o jornalista Lúcio Flávio Pinto. Ele é jornalista do jornal O LIBERAL e correspondente do jornal paulista O ESTADO DE SÃO PAULO. É filho do ex-prefeito de Santarém, Elias Pinto. Que foi cassado!

Pepê interrompeu na hora: -Dmitri, não vale, ele filho do pessoal do MDB. Não vale essa opinião!

Dona Gercy contrapôs de imediato o Pepê: -Isso não quer dizer nada! O Lúcio, que eu saiba, não é filiado ao MDB e nem à ARENA. É apenas um jornalista de 28 anos de idade, que já ganhou até um prêmio nacional. Foi o Esso de jornalismo. Pepê, acima de tudo, ele é apenas ótimo jornalista.

O arenista Toni Santiago revidou: -Mas, que no fundo deve ter uma vingança contra a ARENA, isso ele deve ter. Ora, ora eu sou contra esse jornalista pela desconfiança no passado de sua família.

Eduardo Barbosa Junior levantou-se já injuriado com os arenistas: -Aqui no MODEPADOS já se deixou colocar o livro do Passarinho pela via mais bonita: a do voto. Agora nós queremos apenas debater e o pessoal da ARENA não quer deixar por desconfiança no passado da família do Lúcio. Isso é um absurdo! E um desrespeito com Dona Gercy. Proponho uma votação. Quem for a favor da discussão sobre o livro do Passarinho, levante a mão.

O arenista Toni Santiago novamente revidou: -Calma lá! Eu continuo dizendo que esse ponto de pauta já está vencido. Sou contra a votação.

Eduardo Barbosa Júnior rebateu apregoando uma aposta na democracia: -Quem não quer debater são os arenistas. O conjunto da maioria quer? Só vamos saber se ocorrer uma votação de quem é a favor ou contra a discussão sobre o livro do Passarinho. Conseqüentemente, não existe ponto de pauta já vencido.

Dmitri não agüentou e foi em seguida encaminhando: -Tá decidido. Quem for a favor da discussão sobre o livro do Passarinho levante a mão.

Foi uma vitória fragorosa dos arenistas. 18 votos a favor, dois contra e duas abstenções. Eduardo Barbosa Júnior, outra vez na condição de apresentador, requereu da Dona Gercy o restaurar da exposição: -Com aprovação da plenária, a voz é sua para explanar sobre o livro do Coronel Passarinho.

Dona Gercy recomeça. –Na compreensão do Lúcio, o livro do Passarinho “nem é um livro didático capaz de dar uma visão correta do Pará aos estudantes de primeiro e segundo graus, nem é um ensaio de interpretação criativo e revelador”.

Paulo Barbosa, cáustico, atua de novo: -Quer dizer que o Lúcio Flávio diz que o livro do jumento do Passarinho só serve pra papel higiênico?

Gargalhada geral.

Novamente, Pepê subiu pelas paredes de raiva e impetrou ao Dmitri: -Égua, Dmitri, agora não tem mais jeito, quero a expulsão do Paulo da reunião!

Nem precisou o Dmitri pronunciar-se. –Deixa pra lá, Dmitri, vou ficar aqui fora bebendo meu vinho Galiotto no muro do cemitério, para que eu possa analisar, com profundidade, a influência da falta de alpiste na inteligência humana dos militares brasileiros.

Gargalhada geral.

Pepê e Toni Santiago ficaram putos e calados.

Eduardo Barbosa Júnior, ainda rindo, solicitou, mais uma vez, da Dona Gercy o retorno de sua conferência.

-Meus queridos, eu, auxiliada pelo Lúcio Flávio, encontrei vários erros no livro do Passarinho. Vou colocar um por um. O primeiro. Ele erra nos limites dos cursos do Rio Amazonas. O segundo. Ele erra na definição dos limites do Rio Tapajós. O terceiro. Ele erra sobre a fragilidade e a fertilidade do solo amazônico. O quarto. Ele erra sobre o descobrimento das jazidas de Ferro da Serra dos Carajás. O quinto. Ele erra sobre a produção da hidrelétrica de Tucuruí...

-Peraí, Dona Gercy...-paralisou o Marcelo.

-O que foi? –perguntou atônita Dona Gercy.

-Meus amigos, eu estou propondo uma aposta. Aposto 200 cruzeiros que o livro do Lúcio tem mais de dez erros. Quem topa? –oportunista, Marcelo, acertadamente, quis tirar proveito da ignorância do senador Passarinho.

Somente o Mazinho aceitou a aposta.

E Dona Gercy pôde voltar sua conferência na continuidade dos erros. –O sexto. Ele erra sobre os volumes das inundações do Rio Amazonas. O sétimo. Ele erra sobre os registros pluviométricos da cidade de Belém. O oitavo. Ele erra sobre um dito crescente desenvolvimento industrial paraense que estaria crescendo de forma prodigiosa, o que é irreal. O nono. Ele erra quando cria uma visão preconceituosa sobre a Cabanagem. O décimo. Ele erra quando cria uma visão preconceituosa sobre os índios. O décimo primeiro. Ele erra quando diz “sucuris e sucurijús podem atingir dezenas de metros de comprimento e mais de 02 metros de circunferência”.

Marcelo cantou vitória: -Peraí, Dona Gercy...Eu já ganhei a aposta. Mazinho, pode passar os 200 cruzeiros... Égua, essa da sucuri foi demais...Nessa o Passarinho fumou maconha boliviana. Ah!, como eu já ganhei pode continuar, Dona Gercy ...

O poeta Uriel Barbosa pediu um encaminhamento: -Eu gostaria de dizer que já estou convencido que este livro do Passarinho é ruim demais. Neste sentido, gostaria que este livro não ficasse mais na nossa biblioteca por penúria de conteúdo. Peço o encaminhamento de votação para proposta do meu pleito.

Foi quando abrolhou a surpresa da noite. Dona Gercy, inesperadamente, pediu a palavra. Dmitri concedeu. Foi aí que Dona Gercy deu um show no quesito democracia: -Meus filhos, eu adoro o mundo porque ele tem diferenças entre raças, culturas, credos e gênero. Isso é tão magnífico. Se tiver diferenças, não podemos censurar homens pela heterogeneidade. Mesmo quando erramos, temos que respeitar. Tem mais, a concepção moderna de democracia comporta quatro exigências fundamentais: o reconhecimento dos direitos e das liberdades do cidadão, a participação, o controle e a contestação. É quando reitero que a censura é freqüentemente considerada um atentado à liberdade de expressão. Assim, eu peço em nome da liberdade de expressão que o livro do Passarinho fique na estante do MODEPADOS. Até para demonstrar ao senhor Passarinho um senso democrático que vocês têm e ele não. Isso, sim, é democracia. Muito obrigada!

Incrível, todos ficaram de pé e bateram palmas entusiasmadamente. Até mesmo o Pepê e o Toni Santiago fizeram questão de cumprimentá-la e beijá-la. E para quem não esperava, a união voltou no MODEPADOS entre os emedebistas e arenistas, tudo em prol da paixão eterna pelas empregadas domésticas.

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